Presente na vida de oito entre dez crianças e adolescentes brasileiros, durante o dia o celular funciona como ferramenta para diversão, acesso a redes sociais, monitoramento dos pais e até para estudos. O uso por longas horas, porém, pode ser um problema. Noite adentro, então, acende um sinal de alerta. Confunde o cérebro, prejudica o sono e, consequentemente, altera o ciclo biológico. Na prática, traz danos graves à saúde, como diminuição do crescimento, queda da imunidade, obesidade e até depressão.
O alerta integra um levantamento amplo feito pela King’s College, de Londres, que revisou 20 estudos realizados em quatro continentes. A pesquisa envolveu mais de 125 mil meninos e meninas de 6 a 19 anos – com média de 15. Os distúrbios apresentados têm relação direta com a luz azul emitida pelos dispositivos móveis. Além de manter o cérebro sob vigília, quando deveria estar em repouso, a luminosidade bloqueia a produção de melatonina – hormônio que avisa ao corpo que é hora de dormir – desencadeando prejuízos físicos e mentais.
Não reparador
Pediatra com atuação em medicina do sono, Ana Elisa Ribeiro Fernandes explica que uma noite bem dormida é dividida em cinco fases, sendo a primeira (5% do tempo) bem leve, a segunda (50%) de transição, a terceira e a quarta de sono mais pesado, de relaxamento, na qual acontece a reparação de tecidos e órgãos do corpo, e a quinta, a fase REM (Rapid Eye Movement ou movimento rápido dos olhos), chamada de sono dos sonhos.
Segundo ela, quando dormem menos do que a média recomendada para a faixa etária – de 8 a 10 horas –, crianças e adolescentes impedem o organismo de se reparar e, pior, de consolidar a memória, prejudicando, assim, o aprendizado e até o raciocínio.
No longo prazo, além de danos neurológicos e comportamentais, há conse-quências severas para a produção dos hormônios que controlam o crescimento (GH), a fome (grelina) e o estresse (cortisol), desencadeando problemas estruturais, físicos, e ligados ao metabolismo e ao humor. Por esse motivo, a recomendação aos pais é uma só: orientar e impor limites.
“Trata-se de um problema sério, coletivo, e de difícil abordagem. A fórmula é orientar informando, cri-ando empatia e mostrando os prejuízos acarretados, como raciocínio lento, falta de fluência na linguagem, ganho de peso, já que o relógio biológico fica descontrolado, dor de cabeça, dentre outros”, detalha Ana Elisa.
Orientação e limites
Foi exatamente essa a fórmula usada pela designer de interiores Fernanda Freire com o filho João Vítor, de 14 anos, que, durante as férias, vem trocando o dia pela noite disperso com o celular. “Levei à pediatra e ela mesma fez todas essas observações, ressaltando a importância de uma rotina saudável e abordando problemas que são evitáveis, como baixa da imunidade”, comenta.
Mãe de Manuela, de 9 anos, a economiária Thaís Siqueira Petrassi Matos também começou cedo a colocar regras. Conectada há cerca de um ano, quando ganhou o primeiro celular, a menina só tem direito a usar o dispositivo nos fins de semana e por tempo limitado. A ideia é que passe no máximo quatro horas diante da tela – divididas entre manhã e tarde – para que não deixe de realizar outras atividades, como ler livros e brincar.
“Estabeleço horário máximo para que ela desligue para dormir, estando ela ou não com sono. Nessa hora, sempre há resistência e, muitas vezes, preciso confiscar o aparelho”, revela.
“É um problema sério, coletivo, e de difícil abordagem. A fórmula é orientar informando, criando empatia e mostrando os prejuízos”, alerta a pediatra Ana Elisa Ribeiro Fernandes
Além disso:
Pediatra no Instituto Nascer, em Belo Horizonte, Ana Luiza Diniz ressalta ainda que nos bebês o uso constante de celular afeta muito mais do que o sono. “O cérebro deles está em formação, além da parte cognitiva e das habilidades motoras. Nessa fase, a tecnologia afeta a memória, o foco e a atenção. A posição atual da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) é de não permitir o uso de celular ou tablet por crianças com menos de 2 anos”, alerta. Essa é também a orientação da Academia Americana de Pediatria (AAP).
De acordo com a pediatria, os malefícios do uso de celular por crianças passam também por menor interação com os pais – a exemplo do que ocorre em ambientes como restaurantes – e distração no momento de se alimentar. “O melhor é oferecer, ao invés de tecnologia, brinquedos, papel e giz de cera para que brinquem enquanto esperam o almoço, por exemplo. sobre a distração na hora de comer, pode favorecer à obesidade e ao surgimento de distúrbios alimentares”, reforça.
Dispositivo gera ansiedade e aumenta o risco de depressão
Não é só o uso das telas e a emissão constante de luz nos olhos que ocasionam prejuízos à saúde. Manter o celular no quarto enquanto dorme, mesmo que no modo silencioso, aumenta a ansiedade e prejudica o humor levando, inclusive, ao desenvolvimento de sintomas depressivos.
O motivo é que os dispositivos, de natureza “sempre online”, conforme classificou a pesquisa inglesa, assim como as redes sociais e os aplicativos de mensagens instantâneas, mantêm o envolvimento das crianças e dos adolescentes até mesmo enquanto estão dormindo. O ideal é mantê-los em outro cômodo, fora de alcance.
Psiquiatra da infância e adolescência, Maria Clara Coutinho Pereira explica ainda que a manutenção de um padrão de sono está ligada à melhora do funcionamento mental e vice-versa. “É importante ficar atento quando a criança ou o adolescente apresentar desinteresse por relações interpessoais ou por atividades não virtuais. Irritabilidade, alterações do sono, do apetite, fadiga ou queda significativa no desempenho escolar são outros sinais de alerta”, enumera.
De acordo com ela, a relação entre sono e depressão pode ser explicada pelas alterações neuroquímicas provocadas no cérebro. “Os estudos mostram que a restrição de sono causa alterações em sistemas neurobiológicos e neuro-endócrinos que implicam na fisiopatologia da depressão”, detalha.
Puberdade
As consequências negativas do uso noturno do celular são ainda mais impactantes de 8 a 14 anos, na puberdade. Nessa fase, segundo a pediatra Ana Elisa Ribeiro, meninos e meninas têm a secreção de melatonina atrasada em duas horas em relação ao tempo “normal”, das demais pessoas.
Por esse motivo, se acrescentam um novo fator que impede o funcionamento normal do hormônio, dormem cada vez mais tarde e por menos tempo. “Se a pessoa dorme às 22h, começaria a liberar (a melatonina) por volta de 20h. Na puberdade, há um atraso de duas horas. Ou seja, quem estava pronta para dormir às 22h, agora estará com sono à meia-noite, mas continuará acordando às 6h para ir à escola”, ressalta a pediatra.
A luz azul do celular altera o ritmo circadiano, período de 24 horas sobre o qual se baseia o ciclo biológico dos seres vivos; assim, o cérebro se confunde sobre o que é dia e noite