Já há alguns anos, autoras negras têm despontado mais no mercado editorial brasileiro e permitido ao público ter contato com narrativas que revelam os lugares de fala dessas mulheres, que são filhas da contemporaneidade, mas que, com sua escrita, não deixam de se relacionar com a potência de suas ancestralidades e matrizes africanas. Da precursora Maria Firmina dos Reis a Conceição Evaristo, de Carolina Maria de Jesus à dramaturga mineira Grace Passô, temas como o racismo, a escravidão e a luta por direitos são recorrentes nas narrativas construídas por elas, seja em prosa (escrita ou falada), verso ou em gênero dramático.
“Estou otimista em relação a um crescimento desse mercado (editorial). Pelo menos dentro da minha editora (Record), ter publicado ‘Um Defeito de Cor’ (2007) mudou completamente a visão deles, pois é um livro grosso, numa época em que se fala que as pessoas não leem, só leem meme. É uma temática pesada, escravidão, racismo, escrito por uma autora desconhecida, mas que encontrou seu público”, comenta a escritora Ana Maria Gonçalves, uma das escritoras mais respeitadas da cena atual. Ana esteve em Belo Horizonte na última segunda-feira para um bate-papo na Faculdade Una, dentro do projeto Pretança, e para participar do Segunda Preta, como autora homenageada da quarta edição do projeto. Ambas as iniciativas, aliás, demonstram a pungência das temáticas negras femininas e feministas. Também o fato de as temáticas encontrarem mais lugares de compartilhamento, em saraus, rodas de mulheres, cenas teatrais etc.
Para Ana Maria, é possível perceber um novo paradigma em curso na literatura brasileira e ela toma como exemplo o principal evento literário do país, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que ocorre anualmente. “Na última Flip, era possível ver a cara de espanto das pessoas ao ver um público negro enorme, que nos anos anteriores não ia porque não se sentia representado. As empresas passaram a ver a possibilidade de um mercado lucrativo, porque ele vem quebrar um pouco a chatice que estava a literatura brasileira dos últimos anos. Uma onda de livros muito umbiguistas. E nós estamos trazendo novas propostas de tema, dando uma agitada no mercado”, analisa.
Há 37 anos, a editora Mazza publica livros com temática étnico-racial. Para Maria Mazarello, responsável pela editora, “as autoras, de um modo geral, estão mais presentes no mundo editorial brasileiro”. “Elas ganharam um pouco mais de espaço, mais visibilidade. Na verdade, eu acredito que elas sempre existiram, mas não tinham essa chance. Autoras, que antes eram ignoradas, hoje são até disputadas. Todo mundo quer ter a Conceição Evaristo”, pondera.
Por falar em Conceição, a Mazza Edições foi a primeira editora a publicar a celebrada e desejada autora, que segue como uma das preferidas de Mazarello. Além dela, a editora gosta de Ana Maria Gonçalves, Geni Guimarães e Cidinha da Silva. Para ela, há uma tremenda força na escrita dessas e de outras autoras. “O forte delas é falar da questão do preconceito. Elas botam o dedo na ferida. O foco é a questão racial, a questão do preconceito, a falta de espaço. Elas são fiéis a esse propósito. Não é uma escrita de lugar-comum, essa questão do lugar-comum da branquitude. A questão da negritude incomoda tanto porque é mais nova, é um espaço que batalhamos e estamos abrindo. A branquitude conhece, mas prefere ignorar”, pontua.
A poeta Nívea Sabino é um dos nomes que despontam na cena literária da cidade. Prestes a relançar seu livro “Interiorana”, Nívea sempre teve interesse pela escrita, sobretudo por influência da música e dos castigos peculiares aplicados por seu pai a ela e seus irmãos na infância. “Meu pai colocava a gente de castigo para escutar os cantores e cantoras que ele gostava”, lembra ela. Dessa forma, seus ouvidos foram moldados ao som de Gonzaguinha, Dona Ivone Lara, Vinícius de Morais e tantos outros.
A artista viu sua voz potencializada em saraus de poesia que ocorrem nas periferias de Belo Horizonte, especialmente o Coletivoz – que, durante muitos anos, semanalmente, se reunia no Vale do Jatobá, na região do Barreiro. “Eu venho de um processo da poesia falada, mas senti a necessidade de publicar, de registrar a palavra escrita. Meu processo passa pelo ativismo, pelo fato de ser uma mulher negra e como o racismo nos atinge de maneira estrutural. A palavra é um grito, um desejo de existir, de me colocar nesse universo. Minha poesia parte dessa conexão que minha palavra cria, um diálogo direto com a população negra. Uma poesia mais marginal. Com desejo de dialogar com quem nós somos. A gente escreve, lê. Quando eu publico, é pra criar memória, produção de memória e de conhecimento de mulheres negras”, ressalta a poeta.
Para além, Nívea destaca também o fato de ter sido criada no interior, daí o nome de seu livro: “Somos resistência, somos força, mas temos um desejo de amar, tem uma sensibilidade. Então, penso em um universo mais doce. Penso em um tempo menos acelerado, em que as pessoas se conhecem e vão comprar pão na padaria e conservam sobre a vida”, pontua.
Se liga!
O sarau Preta Poeta acontece a cada 15 dias em Belo Horizonte. Siga o Facebook.
No portal da literatura afro-brasileira, é possível conhecer mais autoras negras.
“Lírica de Favelada”, de Nívea Sabino
Eu gasto muito
é com passagem
Coração selvagem
animalia de mais valia
que me convida
a ousar ser nós
transformando o engasgo
num fuzilo
Só!
Resolvi lutar
com o que não tive acesso
Eu, réu!?
– confesso!
Me negou os versos
Me ouvindo assim
(des) faço um outro
seu me olhar
Quiçá
em ti
encanto provocar
E desmontar
o ódio e
a aversão à cor
que chegam primeiro
do que quem eu sou
Li livros
ouvi discos
folheei jornais, me formei ao gosto
do que tanto faz
Meu grito é o mesmo
dos meus ancestrais
de um Amarildo
que não volta mais
Cairão mais! ( …e quantos mais!?)
N’zinga, não deixa que
(oh!) corram
socorro!
Nenhum
ao meu redor
impediu o metrô
de seguir viagem
Havia um corpo
negro
estendido no trilho
e ninguém
desviou o caminho
Salve e lembrem Dandara
esposa de Zumbi,
quem soube?
Toda periferia sangra
que nem Manguinhos
criança preta
não é bandido
Cê pede paz,
mais um negro jaz!
Aqui Jazz
sambando endosso
te funk na cara
melodia rara
negra graduada(mente)
dominando a fala e a palavra
São
denúncias líricas
de uma favelada
*O Tempo