Estado de Minas
Um homem sequestra um Boeing com 105 pessoas a bordo. Ele executa o copiloto e obriga o comandante a jogar a aeronave em cima do Palácio do Planalto com a intenção de matar o presidente da República. Numa tentativa desesperada de conter o sequestrador, o piloto executa duas manobras consideradas impossíveis por autoridades aeronáuticas e coloca o avião de cabeça para baixo. Após conseguir aterrissar, o drama ainda não terminou. Tem início, então, um tiroteio em plena pista de um aeroporto. Com todos a salvo – com exceção do copiloto – o responsável pelo sequestro acaba sendo atingido mas sem risco de morte. Levado para o hospital, misteriosamente, ele surge sem vida poucos dias depois.
Parece sinopse de filme. E é, já que vai virar um longa-metragem da produtora Escarlate com previsão de filmagens no segundo semestre de 2019 e estreia em 2020. Mas é também uma história real que aconteceu há exatos 30 anos. “É um episódio realmente incrível. Além do enredo em si que é uma pérola da história da aviação brasileira. Uma das coisas que mais me motivaram neste projeto foi o desafio de fazer um filme de ação e praticamente todo passado em um avião. É algo inédito no cinema nacional”, destaca Marcus Baldini, que dirigiu Bruna Surfistinha (2011) e Uma quase dupla (2018),e será o diretor de Sequestro do Voo 375, nome provisório da produção.
Crise, recessão, desemprego e um presidente extremamente impopular, José Sarney. Este era o cenário em 29 de setembro de 1988. O tratorista Raimundo Nonato Alves da Conceição, de 28 anos, solteiro e sem filhos, vira e mexe conseguia trabalho através da Construtora Mendes Júnior, inclusive, em obras da empresa no Iraque. Mas com a situação econômica desfavorável, ele foi despedido e estava difícil arrumar emprego.
Nascido em Vitorino Freire, interior do Maranhão, Raimundo costumava se hospedar na Pensão Paulista, na avenida Olegário Maciel, no centro de Belo Horizonte. O local também servia de posto de recrutamento e alojamento de empreiteiras, como a própria Mendes Júnior. Naquela quinta-feira, 29 de setembro, Raimundo Nonato saiu da pensão (ela existe até hoje, mas mudou de nome – Hotel Miranda – e de donos) e se dirigiu ao aeroporto de Confins. Para ele, havia um só culpado por sua situação: seu conterrâneo: o presidente Sarney.
Na escala em Belo Horizonte, 60 passageiros entraram na aeronave, se juntando aos 38 que já estavam a bordo. Além das seis pessoas da tripulação, Gilberto Renhe, um piloto extra também da Vasp, pegou carona e foi se sentar na cabine atrás do comandante Murilo. Por volta das 11h15, o piloto solicitou o almoço. Foi quando ouviu um barulho que parecia ser tiro
Também na capital mineira, um grupo de colegas do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG) se preparava para pegar o mesmo voo, o Vasp 375. Com pernoite em Cuiabá (MT), indo para Porto Velho (RO) e fazendo escalas em Brasília, Goiânia e BH, o Boeing 737-300 tinha como destino final o Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Alfredo Mário de Castro Queiroz, Cláudio Souza Diniz, Manoel Raimundo de Matos, Renato Neves de Rezende, Amauri Lage e Márcio Machado Mourão tinham compromissos profissionais na Cidade Maravilhosa. “Era um dia como outro qualquer. Lembro que ainda fiz aula de inglês pouco antes de ir para Confins. Ninguém imaginava que a gente ia viver algo tão inusitado”, lembra Manoel, que é economista e tem 75 anos.
Na sala de embarque, o administrador Alfredo Mário, hoje com 66 anos, chegou a notar um sujeito que não largava a mochila de jeito nenhum. “Ele estava meio que deitado na cadeira, agarrado com aquela bolsa. Uma cara meio fechada. Na hora mesmo eu não reparei, mas quando o mostraram na TV, depois do ocorrido, é que fui ver que eu tinha prestado atenção nele”, recorda. Dentro da aeronave, eles se sentaram próximos, do lado esquerdo. Tudo estava correndo tranquilamente. Mas quando o avião se aproximou de Barra do Piraí, interior fluminense, e se preparava para descer, um barulho assustou quem estava a bordo. Na cabine de comando, o piloto Fernando Murilo de Lima e Silva estava acompanhado do amigo, o copiloto Salvador Evangelista, o Vângelis. Eles haviam pernoitado em Cuiabá e chegaram a fazer um churrasco na noite anterior.
O Raimundo sacou a arma da mochila e atirou no comissário. Acabou acertando na orelha dele.Não o matou por milímetros. Como a cabine não abria, ele continuou insistindo. Deu tanto tiro que atingiu o painel, as nossas poltronas e um deles acertou o Gilberto Renhe na perna – Fernando Silva, piloto
“A tripulação toda se conhecia. Mas como a gente decolou de madrugada para Porto Velho, a festividade não durou muito”, conta.
Na escala em Belo Horizonte, 60 passageiros entraram na aeronave, se juntando aos 38 que já estavam a bordo. Além das seis pessoas da tripulação, Gilberto Renhe, um piloto extra também da Vasp, pegou carona e foi se sentar na cabine atrás do comandante Murilo. Por volta das 11h15, o piloto pediu o almoço. Foi quando ouviu um barulho que parecia ser tiro. “Eu pedi ao Renhe para ele dar uma verificada pelo olho mágico e ver o que estava acontecendo. E ele viu um homem com um revólver na mão”, comenta o piloto.
Nas poltronas, boa parte dos passageiros não tinha se dado conta do que estava acontecendo. Alguns chegaram a achar que o barulho era de uma lata de refrigerante sendo aberta ou até de uma garrafa térmica explodindo. “A gente só foi ter noção quando um dos comissários passou ferido no corredor. Naquela hora veio um monte de coisa pela cabeça. Inclusive, que o avião estava sendo sequestrado e nos levando para Cuba”, relata o engenheiro Renato Neves de Rezende, de 59 anos.
Quando percebeu que o avião ia começar os procedimentos de pouso, Raimundo Nonato se levantou e foi em direção à cabine. O comissário Ronaldo Dias achou que o passageiro queria ir ao banheiro e o alertou de que a porta era outra. Raimundo insistiu e o membro da tripulação o informou que ali ele não poderia entrar. “O Raimundo sacou a arma da mochila e atirou no comissário. Acabou acertando na orelha dele. Não o matou por milímetros. Como a cabine não abria, ele continuou insistindo. Deu tanto tiro que atingiu o painel, as nossas poltronas e um deles acertou o Gilberto Renhe na perna. Como o tiroteio não cessava, eu pedi ao Renhe para abrir a porta”, narra o piloto. Renhe em seguida foi para o fundo do avião na tentativa de estancar o ferimento.
Acerto de contas
Quando a cabine se abriu, Raimundo Nonato gritou: “Vamos para Brasília. Tenho um acerto com o Sarney!”. Nesse momento, o piloto acionou o transponder (aparelho que informa a localização e a identificação da aeronave aos controles da terra) e forneceu o código internacional de sequestro. “E ainda avisei bem baixinho que o desejo dele era jogar o avião sobre o Palácio do Planalto”, diz. Quando a Torre de Comando retornou que estava ciente da situação, o copiloto Salvador Evangelista se preparou para responder. Assim que pegou o microfone, foi morto com um tiro na cabeça. “Eu imagino que o Raimundo tenha se assustado com o movimento do Vângelis, achando que ele ia pegar uma arma. Na verdade, ele ia responder para Brasília. A bala pegou no lado esquerdo e atravessou. Ele só tremeu e tombou. Morreu na hora”, lamenta Murilo.
A maioria dos passageiros não tinha a real percepção da gravidade dos fatos. Sabiam que o voo estava sendo sequestrado mas nem imaginavam que a intenção do sequestrador era jogá-lo sobre o Palácio do Planalto e que o copiloto estava morto. Um dos poucos que sabia e presenciou o assassinato foi o representante comercial Francisco de Assis Couto. “Eu estava sentado bem na frente, perto do Raimundo. Eu vi quando ele atirou no copiloto, que ele caiu no manche. Foi muito assustador”, revela Chico, de 74 anos, irmão de Ronaldo Costa Couto, ministro-chefe da Casa Civil na época e que ficou sabendo da presença dele a bordo no decorrer do voo. “Fui comunicado do sequestro e avisamos ao presidente Sarney. Havia preocupação de não dar uma leitura de atentado político por conta desse fato do meu irmão estar lá. Por isso, essa informação só foi divulgada quando estava tudo resolvido”, esclarece Costa Couto.
O administrador Cláudio Diniz, de 66 anos, teve a impressão de que Raimundo o estava encarando. “Ele estava em pé na porta da cabine com a arma apontada para a cabeça do piloto. Eu jurava que ele estava olhando só pra mim. Tirei a almofada do assento e sentei no chão entre as poltronas. Fiquei algumas horas daquele jeito”, relata. Nenhum dos passageiros partiu para cima do sequestrador com receio de que ele estivesse agindo com um cúmplice. Para Alfredo, quando viram que o avião estava mudando de rumo e o piloto avisou que estavam tentando seguir para Brasília, percebeu que a coisa era mais complicada que o esperado. “Esse ‘tentando’ me apavorou. A ansiedade foi muito grande”, aponta.
Em Brasília, o voo Vasp 375 se tornara assunto de estado como lembra o escritor especializado em desastres aéreos Ivan Sant’anna. Em 2000, ele lançou Caixa Preta, livro que traz detalhes deste incidente aéreo. “O ministro da Aeronáutica, o diretor da PF todo mundo foi informado do assassinato e do sequestro e então enviaram um Mirage para acompanhar o Boeing”, relata Ivan. Foi na hora que viu o caça que Cláudio percebeu que a coisa era realmente séria. Já Alfredo sentiu o oposto. “Achei que ele estava ali para nos proteger”, comenta.
Quando estava sobrevoando Brasília, Fernando Murilo se deparou com algumas nuvens e informou ao sequestrador que não havia como pousar na capital federal. Raimundo mandou seguir para Anápolis e logo depois, mudou o destino: Goiânia. “Foi aí que mostrei para ele o marcador de combustível e falei que o avião ia parar de funcionar e a gente ia cair. Ele nem quis saber. Eu continuei sobrevoando a pista de Goiânia e aí ele soltou: ‘Vamos para São Paulo’. Comecei a ficar desesperado porque se a gente mal tinha combustível para ali perto, que diria São Paulo”, recorda.
Raimundo Nonato continuava de terminado em seus propósitos.Foi então que o comandante Murilo fez uma ação que foi crucial para desfecho da história. Ele tirou o avião do piloto automático e executou um tonneau(manobra em que o avião dá uma volta completa ao redor de seu eixo longitudinal) para ver se o sequestrador perdia o equilíbrio
Manobras
Raimundo Nonato continuava determinado em seus propósitos. Foi então que o comandante Murilo fez uma ação que foi crucial para o desfecho da história. Ele tirou o avião do piloto automático e executou um tonneau (manobra em que o avião dá uma volta completa ao redor de seu eixo longitudinal) para ver se o sequestrador perdia o equilíbrio.
“Assim que terminei o tonneau vi que ele ainda continuava de pé. Foi então que decidi partir para uma manobra mais arriscada, o parafuso (o avião perde a sustentação e cai de bico, girando as asas como um pião; a aeronave gira descendo)”, explica. Murilo já tinha executado essa manobras algumas vezes durante a época em que foi aviador militar. Mas nunca tinha feito um parafuso com um boeing. “Um dos motores havia parado e eu pensei, como vou morrer mesmo, vou arriscar. Parti para o tudo ou nada. Já que vou morrer, vou morrer brigando porque, pelo visto, ele não ia me deixar pousar”, justifica.
Quando concluiu o parafuso, o piloto percebeu que Raimundo estava caído. A pista estava logo à frente do comandante, que não titubeou: aterrissou. “Eu te confesso que não imaginava que ia dar certo. Foi uma grande sorte. As manobras foram primordiais para que tudo desse certo”, garante.
Apesar de a manobra ter sido rápida, quem estava a bordo sentiu os efeitos. O engenheiro Renato Neves achou que o piloto tivesse sido atingido e, por isso, o avião estava rodopiando. “A sensação era de que a gente estava caindo. Achei que era o fim mesmo. Comecei a me despedir da minha família em pensamento”, relata. Já Manoel se recorda de olhar para baixo e ver o céu. “A gente estava de cabeça pra baixo. Fiquei bem confuso, desorientado. Só me lembro de ver a terra se aproximando. Na minha cabeça, eu ia morrer. Não sabia se fechava ou abria os olhos para ver a morte chegando”, detalha. Francisco de Assis também sentiu que estava numa posição estranha e confessa que foi a hora que bateu o desespero. “Sou uma pessoa relativamente calma, mas naquela hora todo mundo gritou, inclusive eu. Só pensava nos meus filhos”, admite.
A façanha do comandante Murilo, no entanto, não é reconhecida pela Boeing. Mesmo com testemunhas dentro e fora do avião, a empresa nunca homologou o feito. “Isso nunca tinha acontecido na aviação comercial. Eles alegam que é praticamente impossível um Boeing executar isso. E o gravador de bordo também parou de funcionar e não registrou o que ocorreu”, analisa Ivan Sant’anna.
Tiroteio na pista
Mas a história ainda estava longe de acabar. O alívio era grande por, pelo menos, estarem em solo. Mas Raimundo recuperou a pistola e continuou com as ameaças. “Ele queria ir para Brasília de qualquer jeito e eu expliquei que aquele avião não teria como decolar de novo”, frisa Murilo. Depois de muita negociação, envolvendo Polícia Federal, Secretaria de Segurança Pública de Goiás e a própria Vasp, Raimundo Nonato aceitou embarcar em um Bandeirante da Força Aérea Brasileira. No entanto, levou o comandante Murilo como refém. “Antes disso, eu pedi a ele que liberasse o corpo do Vângelis e os feridos para fora da aeronave. Foi só ai que a tripulação e os passageiros se deram conta da tragédia. Foi uma comoção”, lembra.
Quando desceram do boeing, Murilo e o sequestrador se dirigiram para o avião menor que não tinha escada e nem porta. Era uma armadilha para Raimundo Nonato Alves da Conceição. “Você não vai me trair né?”, questionou o maranhense ao encarar o piloto. “Não. Não vou. Vai dar tudo certo”, garantiu. Como Raimundo era baixinho, Murilo teve que fazer um calço com as mãos para ajudá-lo a subir no Bandeirante. “De repente veio um tiro na nossa direção e quase me pegou. Tinha um atirador de elite escondido na aeronave. Eu soltei o Raimundo e sai correndo em zigue-zague. Nem sei porque eu corri daquele jeito. Na mesma hora, ele pegou o revólver e começou a tirar em mim. O Raimundo havia confiado em mim e se sentiu traído. Um tiro pegou na minha perna; até hoje tenho a marca, mas consegui correr de volta até o boeing”, narra.
Fernando Murilo e os tripulantes Gilberto Renhe e Ronaldo Dias, além do próprio Raimundo, foram levados para o hospital Santa Genoveva, na capital goiana. Alguns dos passageiros seguiram para a delegacia para prestar depoimentos, mas a maior parte se dirigiu a um hotel. “Minha ficha só caiu quando consegui falar com minha mulher e minha mãe em BH. Quando entrei no chuveiro, disparei a chorar”, conta Cláudio. Para Manoel, a experiência foi única e provou que ninguém morre de véspera. “É uma história que marca a gente para sempre e acho que fiquei até mais religioso. Mas não cheguei a ficar com trauma de voar”, afirma.
Já Renato ressalta o papel não só da tripulação e dos passageiros, que conseguiram manter a calma mesmo em um momento tão delicado, mas principalmente, a atuação do piloto. “Ele é o nosso ídolo. Foi uma sorte muito grande. Se a gente tem sete vidas, cinco já foram ali (risos). A coisa mais extraordinária é termos sobrevivido a essa situação. Foi por muito pouco e chega a nos transformar”, salienta.
O passageiro Francisco de Assis comenta como uma viagem que parecia banal poderia ter resultado em uma tragédia. O voo de duração de 50 minutos, que decolou rumo ao Rio, às 10h52, só terminou por volta das 19h, na pista do aeroporto de Goiânia. “Não era para ser a nossa hora. Tive outras situações bem complicadas em que quase fui embora, como um afogamento em Cabo Frio e um acidente de carro anos depois. Difícil eleger qual foi o maior sufoco, mas só tenho a agradecer por estar aqui e ter 74 anos bem vividos”, comemora.
Para o comandante Fernando Murilo, o pior momento foi, sem dúvida, a execução de seu amigo e parceiro de cabine, Salvador Evangelista, com apenas 34 anos. Na hora do ocorrido, o piloto desabou em lágrimas, mas conseguiu manter o controle emocional e administrar toda a situação.
“Eu não parava de chorar porque senti muito a perda dele e daquela forma estúpida. Cheguei a falar com o sequestrador que ele tinha matado um cara do bem, pai de família e que tinha deixado uma filha pequena. O Raimundo não queria nem saber. Eu estava sozinho com 100 pessoas a bordo e tudo dependia de mim. Mas consegui me acalmar e conduzir da melhor forma possível”, avalia o piloto, com os olhos marejados.
Durante um bom tempo, o comandante teve dificuldades para dormir e chegou a ter acompanhamento de psicólogos e até a tomar tarja preta. “Eu sonhava muito com tiro ou tinha a impressão de ouvir tiros a qualquer momento do dia. Mas ainda bem que tudo se resolveu. Voltei a voar um mês e meio depois e fiz cinco vezes seguidas a mesma rota: Porto Velho – Rio com escala em Goiânia, Brasília e BH. Foi justamente para ver se tinha algum trauma”, diz.
Ao longo dos anos, o piloto não teve mais contato com os passageiros, a não ser um grupo de alemães que volta e meia retornava ao Brasil para celebrar a data. “Não deixa de ser um renascimento. Brinco que completei 71 anos em 19 de setembro, dia que nasci, e 30 anos, em 29 de setembro, quando renasci”, ressalta.
Durante alguns anos, ele trabalhou em uma empresa de transporte aéreo de cargas de Curitiba, onde vive a filha única do copiloto, Wendy, que hoje tem 38 anos. Murilo é, inclusive, padrinho de Fernanda, neta de Vângelis. O comandante chegou a receber algumas medalhas e honrarias por seu heroísmo, mas sequer recebeu um “obrigado” de José Sarney. “Ele nunca me dirigiu a palavra. Nunca me agradeceu. Mas não tenho mágoa. Estou tranquilo com minha consciência e sei que fiz meu papel”, assegura.
Morte cercada de mistérios
Após investigações, ficou provado que Raimundo Nonato Alves da Conceição havia planejado o ato. Em seus pertences, foram encontradas passagens de avião do trecho Rio-BH. Segundo a polícia, o sequestrador estava testando quais dos aeroportos eram mais vulneráveis. Naquela época, os aparelhos de raios-X e detectores de metal não eram utilizados para verificar bagagens no aeroporto de Confins, o que permitiu a passagem livre do maranhense.
“Ele entrou com munição, arma. Na época dos atentados das Torres Gêmeas, essa história interessou muitos pilotos norte-americanos. Treze anos antes do World Trade Center, nós tivemos aqui no Brasil um caso de alguém querendo jogar um avião em um prédio público. Só que no caso dos EUA, eram terroristas e, no nosso, se tratava de um maluco”, examina Ivan Sant’anna.
Durante o tiroteio na pista, Raimundo Nonato levou três tiros, mas não corria risco de morrer, de acordo com os médicos do hospital em Goiânia. “Ele teria alta, inclusive, antes de mim. Fiquei até com receio de ele vir atrás de mim, já que, na cabeça dele, eu havia traído sua confiança”, recorda o piloto Fernando Murilo. Quando seria transferido para a prisão, misteriosamente, o sequestrador amanheceu morto em seu leito no hospital.
“A morte foi tão inesperada e estranha que nenhum legista de Goiânia quis dar o atestado de óbito. Tiveram que chamar um legista de fora, o Badan Palhares, que anos depois ficou notório com uma autópsia controversa na morte do tesoureiro PC Farias, em Alagoas”, relata Ivan. O laudo apontava que a causa do óbito do tratorista era anemia falciforme e não tinha nenhuma relação com os tiros. “O que falavam era que ele foi assassinado pela própria polícia com uma injeção letal. E o caso foi esquecido”, acrescenta o escritor.
Do ar para o mar
O carioca Fernando Murilo de Lima e Silva, de 71 anos, entrou na aviação meio que por acaso. Quando estava no científico do tradicional colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, viu uma placa na porta da instituição: ‘Não seja soldado. Seja um oficial da Força Aérea. “Eu tinha 18 anos e passei na Academia da Força Aérea, em Pirassununga (SP), sem fazer cursinho, nada. Fiz o curso de militar lá e logo depois fui chamado para a aviação comercial que estava com muita demanda”, recorda. Depois de atuar no táxi-aéreo, ele seguiu para a Vasp, onde ficou por 25 anos, em rotas nacionais e internacionais. “Todo mundo que era estável na Vasp foi obrigado pelo Wagner Canhedo, então presidente da companhia, a se aposentar e foi então que saí. Depois segui para dar aula para pilotos na Universidade Tuiuti do Paraná, em Curitiba”, conta ao Estado de Minas, que o encontrou no litoral fluminense.
Durante sete anos, Murilo foi professor, mas sentia muita falta de voar. “Acabei voltando a pilotar. Primeiro na Avianca e depois em transporte de carga. Virei piloto por acaso. Não era sonho de menino, mas eu me apaixonei. Nem sei te enumerar o que mais gosto dessa profissão. O meu escritório é dentro de uma cabine onde tenho uma visão privilegiada do litoral, do continente, da Amazônia. Foi ali que vi cada pôr do sol e nascer do sol mais lindos do que o outro. É uma coisa que entra no sangue e não sai; é uma cachaça”, frisa.
Aposentado há um ano, ele deixou Curitiba e mora hoje num condomínio na praia de Geribá, em Búzios, na região dos Lagos fluminense, ao lado da segunda esposa, Patrícia, da filha Thereza, além do gato Chico e da cachorrinha Martinha. “Não voo mais. Agora quero sossego. Troquei o céu pelo mar”, brinca.
A Vasp deixou de operar em 2005 e teve a falência decretada três anos depois.
Filme a caminho
Foi a partir da pesquisa de Constâncio Viana Coutinho, jornalista e produtor de Brasília, que Joana Henning, criadora da Escarlate Conteúdo Audiovisual e Experiências Criativas, decidiu transformar o episódio do Voo 375 da Vasp em um filme. “Constâncio pesquisou essa história durante muitos anos. Ele conheceu e entrevistou várias pessoas envolvidas e tinha a ideia de fazer um documentário inicialmente. Eu já conhecia essa história, mas nunca tinha parado pra pensar que ela poderia ser tornar um filme. Foi a partir desse trabalho dele, os detalhes, a complexidade, que me dei conta de que tinha um longa nas minhas mãos”, revela Joana.
Com roteiro de Lusa Silvestre (Estômago e Um namorado para minha mulher), Sequestro do Voo 375 tem orçamento de R$ 10 milhões e promete ser um filme de ação nunca antes feito no Brasil, com direito a estrutura e equipe de fora.
Joana Henning destaca o lado humano do roteiro e diz que o projeto também vai explorar a relação entre os personagens, sobretudo do comandante com o sequestrador. “O Murilo é o grande herói dessa história. Um herói de carne e osso”, analisa.
O diretor Marcus Baldini entrou há poucos dias na empreitada. Ele revela que desconhecia o caso, mas quando leu o roteiro – que está no primeiro tratamento – ficou fascinado. “Tudo é extraordinário. Acho que o nosso filme tem um pouco dessa missão também, de resgate e divulgação desse episódio”, frisa o cineasta.